Linha do tempo

Mas do que se trata um livro de artista? Respondo de pronto que suas possibilidades são muitas. Produzido, em muitos casos, artesanalmente pelo artista e em tiragem limitada, o livro lida com a multiplicidade de meios – texto, áudio, desenho, fotografia etc. – e mantém viva uma ideia de narrativa. Um de seus desmembramentos é o livro-objeto, um “acontecimento plástico”¹, nas palavras de Luiz Camillo Osorio, que aproxima o livro da escultura. Nesse caso, sua presença no mundo se faz fortemente com uma “relação óptica” com o público. Esta exposição, decididamente, reflete sobre distintos conceitos de livro de artista com a proposta de ampliar a sua percepção. Mais do que um livro e/ou seu conteúdo pensado por um artista, o que se coloca são as inúmeras possibilidades de sua aparição. Exemplos não faltam, tais como a produção de uma revista pelo próprio artista, que concebe seu conteúdo e o design gráfico; a ilustração de uma publicação ou a produção de uma obra especialmente concebida para a sua capa; a execução de um álbum de gravura, em caráter de tiragem limitada; o fotolivro; e, como dito, o livro em uma associação livre com um objeto que se vale de sua plasticidade. Além disso, o livro pode ter diferentes formatos, desde uma escultura, passando por uma mala, um livro de colorir, um álbum fotográfico ou uma caixa. Seus materiais, então, são os mais diversos, indo do papel ao vidro e à cerâmica.

Angelo Agostini
Cabrião, ano 1, nº 46, 25 de agosto de 1867
impresso por tipografia
Acervo Banco Itaú

Não ouso traçar a gênese do livro de artista no Brasil, mas é importante destacar as múltiplas atividades do chargista, ilustrador e editor Angelo Agostini (1843-1910), responsável por diversas publicações, como O cabrião (1866-1867), O polichinelo (1876) e Don Quixote (1895-1903). Agostini dedicou-se à produção de charges das quais ninguém estava a salvo, desde as eminentes figuras políticas, com destaque para Dom Pedro II, até os expoentes culturais da época e uma parcela da burguesia liberal que, em certa medida, vislumbrava, ou ao menos discutia, ares republicanos – mas ainda guardava laços profundos com o regime escravocrata. As idiossincrasias da sociedade brasileira estavam expostas por meio de suas ilustrações satíricas. As revistas de Agostini acabaram, por meio de sua criação poética e linguagem ácida, contribuindo para o início do que passamos a denominar, com o tempo, de livro de artista. Agostini esteve à frente de todas as etapas das revistas, articulando outras possibilidades para a atividade e o fazer artístico. Suas obras não fazem parte dos núcleos desta exposição, que se volta para a segunda metade do século XX em diante, mas sua trajetória artística deve ser destacada de forma a gerar novas pesquisas sobre seu trabalho.

O fato de citar a obra de Agostini como partícipe do mundo dos livros de artista cria um desdobramento sobre esse conceito. Pouco ou nada citado como um artista produtor dessa qualidade de livro – que agencia artes, design e política, numa contaminação semântica entre imagem e palavra, provocando novos modos de pensar o livro, ao mesmo tempo que ele vira uma plataforma de experiências gráficas, literárias e políticas numa produção de tiragem limitada –, a inserção de Agostini tem um risco que diria ser político. Quero pensar em como o livro de artista, um conceito que seguramente não existia naquela época, já possuía antepassados no Brasil do século XIX. Um risco que também corro ao trazer a estética da literatura de cordel presente na Pequena Bíblia de Raimundo de Oliveira (1966), como uma possibilidade de livro de artista. Risco porque a historiografia não os vê como produtores de livros de artista. São dois exemplos de revistas e livros que foram pensados em sua integralidade por seus respectivos criadores, desde a concepção gráfica até o formato, o conteúdo e o meio de circulação.

A produção de capas de livros e ilustrações por artistas plásticos é algo recorrente. Passando pelos modernismos e avançando pelas contribuições de artistas como Portinari (1903-1962), Goeldi (1895-1961) e Di Cavalcanti (1897-1976), tendo os Cem Bibliófilos como marco dessa produção, a associação entre design, literatura e artes visuais é prolífica. Um rápido parêntese sobre a Sociedade dos Cem Bibliófilos do Brasil, que possui forte presença no acervo da Coleção Itaú Cultural: fundada em 1943, ela se manteve ativa até meados de 1968 e se dedicou à publicação de importantes obras da literatura brasileira ilustradas por artistas consagrados. A sociedade, que muito se aproximava dos clubes de colecionadores de livros da Europa e dos Estados Unidos, publicou, por exemplo, Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), ilustrado por Candido Portinari, e O compadre de Ogum, de Jorge Amado (1912-2001), ilustrado por Mário Cravo Júnior (1923-2018).

A produção de capas e ilustrações foi e continua sendo uma forma de sustento para muitos artistas. Ao longo do tempo, o diálogo entre artes visuais e design fez com que os atributos criativos de ambos os campos estéticos se tornassem mais férteis. As capas e as ilustrações elaboradas pelos artistas incentivam um novo diálogo com o texto, permitindo uma ampliação do campo de imaginação daquela obra literária.

As narrativas aqui reveladas transbordam constantemente novas interpretações. Narrativas, nesse caso, podem ser entendidas sob dois pontos de vista. O primeiro, no campo da pluralidade de ações que envolvem a produção do livro de artista e suas relações próximas não só com a literatura stricto sensu, mas com as artes visuais, o design e a política; e o segundo, na imagem de uma leitura que nunca se esgota e sempre se desdobra em novas perspectivas, redefinindo o papel do próprio livro, assim como o do leitor e o do artista.

Felipe Scovino | curador

Nota: ¹OSORIO, Luiz Camillo. Entre o ver e o ler: a forma-livro na arte de nosso século e seu desdobramento na arte brasileira contemporânea: Waltércio Caldas e Artur Barrio. In: SÜSSEKIND, Flora; DIAS, Tânia. A historiografia literária e as técnicas de escrita: do manuscrito ao hipertexto. Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa: Vieira e Lent, 2004. p. 404.

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